Alguns juristas entendem que revogação deverá produzir efeitos apenas a partir de 1° de janeiro de 2024. Abac avalia que alíquotas definidas na Lei 14.301/2022 não foram alteradas, uma vez decreto foi imediatamente cancelado pelo novo governo.
O intervalo de um dia entre a entrada em vigor de um decreto editado antes da virada do ano pelo então presidente da República em exercício, Hamilton Mourão (Republicanos-RS), e sua revogação pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), vem gerando diferentes interpretações no setor. A medida cancelada previa o desconto de 50% nas alíquotas do Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante (AFRMM) a partir de 1º de janeiro de 2023. Alguns agentes veem risco de judicialização por parte de empresas que entraram ou estudam ingressar com liminares para tentar garantir o desconto concedido antes do fim de 2022.
Marcos Poliszezuk, sócio-fundador do Poliszezuk Advogados, explicou que a discussão foi travada sobre a eficácia do decreto, uma vez que ele entrou em vigor em 1º de janeiro e foi revogado em 2 de janeiro, produzindo efeitos somente neste interregno. Ele observa liminares sendo concedidas às empresas, no sentido de que o decreto 11.374/2023 teria afrontado as regras da anterioridade anual e nonagesimal, previstas no artigo 150 da Constituição, uma vez que um dos artigos do ato normativo indicou que o decreto entraria em vigor na data da sua publicação (1º de janeiro de 2023).
Poliszezuk mencionou a natureza jurídica do AFRMM, que foi definida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como sendo Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide). Para ele, isso faz com que a revogação do Decreto 11.321/2022 apenas possa produzir efeitos a partir de 2024. “No esteio das liminares deferidas, são grandes as chances das empresas que entenderem ter sido prejudicadas com a edição do decreto concederem eficácia ao conseguirem na Justiça que o mesmo, pelo princípio da anterioridade anual, somente surtirá seus efeitos a partir de 1º de janeiro de 2024”, comentou à Portos e Navios.
Carolina Romanini Miguel, sócia do Cescon Barrieu na área tributária, também citou a caracterização do AFRMM como um tributo da espécie Cide, conforme definido pelo STF, tendo sido julgado pela 2ª Turma em novembro de 2022, sob relatoria do ministro Nunes Marques, e em 1995 no plenário da Corte, sob a relatoria à época do ministro Carlos Velloso. Ela explicou que o princípio da anterioridade, previsto no artigo 150 da CF, veda à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios cobrar tributos em relação a “fatos geradores
ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado; e no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”.
A advogada acrescentou que a Lei 10.893/2004, alterada pela Lei 14.301/2022, prescreve que “o poder Executivo poderá estabelecer descontos nas alíquotas (…), desde que não diferenciados de acordo com o tipo de carga e com os tipos de navegação, levando em consideração apenas o fluxo de caixa do FMM”. Carolina considera que, por um dia, a redução de alíquotas do AFRMM produziu efeitos.
“Ainda que por um curto período, o novo decreto aumenta a contribuição, devendo ser observado, portanto, o princípio constitucional da anterioridade, que consiste em um limite objetivo ao poder de tributar, ou seja, sua verificação é pronta e imediata, independentemente de juízo de valor. Houve aumento do AFRMM um dia após sua redução. Esse aumento somente pode ser implementado no exercício seguinte ao decreto, ou seja, 01/01/2024”, analisou a advogada. Carolina também lembrou de uma decisão liminar favorável ao contribuinte, concedida por um juiz da 35ª Vara Federal de Pernambuco, além de uma série de ações nesse sentido.
Fábio Barbalho Leite, sócio da Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados, lembrou que o AFRMM é um tributo instituído pela lei 10.883/2004, no primeiro mandato do presidente Lula. “Há tempos, já foi reconhecida a natureza de Cide a esse tributo pelo Supremo Tribunal Federal”, reforçou. Leite observa que, na mesma medida em que representaria renúncia fiscal, o decreto geraria redução do encargo tributário.
“Produzido no apagar das luzes, claramente sem nenhum consenso político subjacente, sobreveio o óbvio: o decreto foi revogado, com a edição do Decreto 11.374/23, publicado já em 2 de janeiro. Num contexto de crise fiscal conhecido e evidente e sem qualquer pacto político em torno do tema, era resultado óbvio”, avaliou Leite. O advogado indagou se, diante de limitações constitucionais à tributação, essa sequência de decretos permite algum efeito favorável aos contribuintes. Ele considera que sim, na medida em que uma Cide como o AFRMM atraia as limitações da anterioridade e anualidade, tanto para sua instituição, quanto para sua majoração — aumento da imposição tributária pelo aumento da base de cálculo ou alíquota.
Ele explicou que o STF tem reconhecido que o chamado “aumento indireto” — quando o resultado da imposição tributária é alterado para maior mediante diminuição ou extinção de descontos, hipóteses de isenção ou redefinições da base de cálculo ou ainda pela diminuição de benefício fiscal — deve respeitar a mesma restrição. Segundo o advogado, esse entendimento foi firmado a partir de um processo sob relatoria do ministro Marco Aurélio, posteriormente reafirmado, entre outros, em processo sob a relatoria do ministro Alexandre Moraes, sendo aplicado inclusive em outras decisões.
Para Leite, diante desse cenário jurisprudencial, a tendência que se põe é o de reconhecimento jurisdicional de que a revogação do decreto 11.321/22, resultando aumento do encargo tributário em relação ao disposto no decreto revogado deverá produzir efeitos apenas a partir de 1° de janeiro de 2024. Ele disse que, nesse sentido, a Justiça Federal da Seção Judiciária de Recife (PE) entendeu, em decisão liminar recente, que, embora não constitua formação firme de jurisprudência dado o grau da instância e a natureza liminar, certamente encoraja os contribuintes a buscarem o reconhecimento desse direito constitucional perante a Justiça.
A Associação Brasileira dos Armadores de Cabotagem (Abac) avalia que o decreto publicado no final do ano passado causou surpresa ao setor, entre outras razões, por não ter sido assinado pelo Ministério da Infraestrutura à época. A associação ressaltou que as alíquotas do AFRMM foram alteradas pela Lei 14.301/2022 (BR do Mar), quando foi estabelecido uma sensível redução no longo curso (de 25% para 8%), enquanto na cabotagem o percentual a ser recolhido caiu de 10% para 8%. A lei também criou a alíquota de 8% para a navegação fluvial e lacustre, por ocasião do transporte de granéis sólidos e outras cargas nas regiões Norte e Nordeste, o que a Abac vê como um benefício direto para o agronegócio.
“A possibilidade de desconto também foi criada pela Lei 14.301 e prevê que leve em consideração o fluxo de caixa do Fundo da Marinha Mercante (FMM), aspecto que não vimos nenhuma análise ou consideração, ou até mesmo envolvimento do setor do Minfra, responsável por acompanhar esse fluxo — o então DEFOM”, comentou o diretor-executivo da Abac, Luis Fernando Resano, à reportagem.
A Abac também avalia que a queda de quase 40% na arrecadação do AFRMM, reportada no relatório mensal do FMM, possa ter sido provocada por fatores como: alteração da alíquota do longo curso de 25% para 8%; queda dos fretes internacionais; e aumento da parcela de repasse para o fundo naval de 0,4% para 10,4%. “Na última reunião do CDFMM, foram aprovados três projetos portuários, o que mostra que o fluxo do caixa do FMM é de aumento de gastos e redução de receitas, o que não justificaria um desconto”, acrescentou Resano.
A justificativa do decreto que previa desconto nas alíquotas do AFRMM era impactar positivamente o setor da navegação, por exemplo, contribuindo com a redução de custos de fretes marítimos, além de diminuir o preço de fertilizantes, dos combustíveis importados e de produtos do setor primário.
A Abac observa escritórios de advocacia oferecendo adoção de medidas para que vigore em 2023, sob a alegação do princípio da anualidade. Numa primeira análise, porém, a Abac entende que as alíquotas não foram alteradas, e sim foi concedido um desconto que sequer teve vigência, pois entrou em vigor no mesmo dia em que o decreto que o concedeu foi cancelado. “Se ações judiciais forem adotadas, certamente teremos um impasse para o governo resolver, pois 30% da arrecadação do AFRMM é direcionada para o caixa do governo
a título de Desvinculação de Receita Única (DRU), que suporta o orçamento da União e esta perda não foi considerada”, apontou Resano.
A Abac acredita que o FMM também será seriamente impactado no seu fluxo de caixa. O entendimento é que a perda na arrecadação decorrente da DRU e os fundos que são alimentados por recursos do AFRMM, que são o Fundo Naval, o Fundo de Ciência e Tecnologia e o Fundo do Desenvolvimento do Ensino Profissional Marítimo, e ainda o principal, que é o Fundo da Marinha Mercante. Resano lembrou que todos estes fundos são importantes para o superávit primário do governo.
Na avaliação da associação, o intervalo entre publicação e revogação não chegou a produzir algum efeito. A Abac considera que não ocorreu uma alteração de alíquota. “A Lei não foi alterada. O governo (anterior) exerceu sua prerrogativa de conceder o desconto, porém sem a devida análise do fluxo de caixa. E isto parece já ser uma ilegalidade”, disse Resano
Rua São José, 40 - 3º andar
CEP 20010-020 – Rio de Janeiro – RJ
Tel: 21 3231-9065
abac@abac-br.org.br
LinkedIn
Patrícia Nogueira / Ana Salazar
Tels: 21 3114-0699 / 98302-6967
patricia.nogueira@argumentogi.com.br
© 2024 ABAC - Associação Brasileira de Armadores de Cabotagem